sábado, 4 de setembro de 2010

Seguir a corrente ou navegar à bolina?


A utilização indiscriminada e avulsa do adjectivo “desportivo” generalizou um termo com uma amplitude polissémica cada vez mais lata. Hoje assistem-se a manifestações cuja pressurosa catalogação, pelos ditames do marketing comunicacional, de “desportivas” ou “culturais” seriam impensáveis há bem pouco tempo atrás. Sinais dos tempos? Expressão das dinâmicas de uma sociedade global e pós-moderna? Banalização de conceitos? Estas inquietações e questões não se projectam apenas na esfera da construção de um quadro conceptual de análise da realidade social por quem se dedica a investigar o desporto, mas são determinantes na estrutura de valores que compõem o acervo civilizacional que é o desporto.

O desporto reproduz, difunde, preserva e transmite, como qualquer outro fenómeno social e cultural, os seus valores. Aprofundar como se desenvolve este processo é um elemento decisivo quando se pretende clarificar uma estratégia de desenvolvimento social através do desporto. Poder-se-à considerar, em ultima instância, que são os públicos/destinatários que determinam os valores vigentes em qualquer domínio cultural e estético, onde o desporto não é excepção, e assim se retirarem responsabilidades políticas desta equação. Poder-se-à, em sentido contrário, considerar que os públicos se educam.

Num contexto onde a cultura de massas contaminou os modos de vida das populações por um entretenimento de satisfação imediata, prático, ligeiro e com o maior showbizz possível, baixando significativamente os patamares de exigência dos públicos do desporto - na condição de praticantes, mas principalmente de espectadores e consumidores - na justa medida em que se foram alargando e aumentando a sua iliteracia desportiva, é decisivo para quem assume funções de direcção técnica ou de decisão política saber claramente quais os valores a preservar. Quais os percursos de desenvolvimento desportivo a trilhar através dos instrumentos que dispõem (financiamento, regulação, mobilização política, etc)?

O desporto, como outros, é um bem de mérito, ou seja, a comunidade beneficia do valor intrínseco que este gera em cada cidadão, pelo que se justifica que a colectividade (Governo/Autarquias) apoie aquilo que todos beneficiam e não se esgota apenas no indivíduo. São iniludíveis as competências públicas na salvaguarda e desenvolvimento deste bem.

Porém, ao colmatar as disfuncionalidades do mercado que naturalmente replica o contexto social dominante em que se insere, onde sobre a proteiforme definição de desporto cabe tudo - desde o apoio ao movimento associativo tradicional, à programação de uma rede de infra-estruturas desportivas de base ou instalações destinadas ao espectáculo, passando pelos programas de activismo físico em 30 minutos, até aos mega-eventos e produções desportivas, da animação desportiva em praias, áreas naturais ou espaços públicos, dos torneios e competições internacionais até às práticas recreativas de bairro - cumpre à gestão pública, seja ela central ou local, identificar quais destes e de muitos outros elementos têm um valor desportivo intrínseco, e como tal susceptíveis de subvenção pública, daqueles cujo desporto é apenas um mero componente instrumental para se atingir outros objectivos, por certo legítimos, mas estranhos ao desenvolvimento desportivo. É isso que se exige a quem administra fundos públicos, com maior premência em sectores de actividade onde o seu peso é decisivo.

Há que saber transmitir à comunidade e aos agentes desportivos estas diferenças entre o que é essencial e o que é despiciendo para a construção sustentada de uma estratégia de desenvolvimento desportivo. E esse é um caminho que inevitavelmente se ancora em valores que por vezes colidem com os timings do processo político, pelo que raramente a mensagem é passada de forma cristalina à sociedade, com o que isso gera em depredação de dinheiros públicos e desintegração do tecido desportivo.

Aprendemos que as políticas medem-se pelos resultados e não pelas intenções. Medem-se pelo valor criado a partir do que se investe e não apenas pelo montante das verbas que se despendem. Medem-se pelo número e fidelização de praticantes e pela qualidade dos resultados alcançados e não apenas pelas eventuais oportunidades que se constroem para que isso aconteça. Mede-se também pela forma como se nobilita o espaço público desportivo e se credibilizam as suas instituições.

Mas que valores importa então suportar, preservar e desenvolver quando a comunidade, ela própria, se revê numa cultura desportiva de massas e alimenta as suas formas de expressão desportiva? Seguir a corrente ou navegar à bolina?


5 comentários:

Luís Leite disse...

A governação de um país só faz sentido se for programatica e estrategicamente feita de ideias claras e globalmente integradas que sirvam para melhorar, de modo financeiramente viável, as condições de vida da população.
Infelizmente, Portugal é um país relativamente pobre que se habituou, nas últimas décadas, a viver acima das suas possibilidades.
A partidocracia em que caímos preocupa-se fundamentalmente com a conquista do Poder, com o objectivo essencial de dele tirar o máximo proveito para os próprios eleitos e clientelas partidárias.
O interesse nacional está muito relativizado.
O actual estado do país deve-se a uma profundíssima crise de valores morais e éticos que tende a acentuar as desigualdades sociais.
Só assim se compreende que se continue a insistir nos mesmos erros no que respeita ao controlo da despesa pública, à ineficácia na Justiça, ao nivelamento por baixo na Educação.
Neste cenário, os "bons" não se querem meter na lama da política.
Uma nova mentalidade desportiva só será possível como resultado de uma profunda revolução social e de costumes. Que não é previsível com um regime político que apodreceu.

Fernando Tenreiro disse...

Bom fim-de-semana João ALmeida,

Isto está tudo muito mau.

A quem imputar o empate de ontem? A que protagonista inepto entre os muitos de que se fala?

Seguir a corrente e andar à bolina pode ajudar para tratar de uns casos primeiro e deixar outros para mais tarde.

Tomemos o caso da definição de desporto.

Era bom usar apenas uma definição.

A do Conselho da Europa é a escolhida por inúmeras instituições mundiais, estudos e investigações e pela União Europeia.

Se estiver numa de investigar tudo, dê asas à sua imaginação.

Se quiser tomar uma definição de desporto para avançar para outros objectivos então use a do CE.

Se quiser apenas melhorar a do CE então faça isso.

Veja como a actividade física é um trinta e um de boca que se coloca numa Lei de Bases qualquer sem consequências de política.

Este foi um mau serviço à actividde fisica e ao desporto e talvez se justfique decididamente navegar à bolina.

Com estas decisões mais pequenas se podem melhorar as acções de incentivo aos bens de mérito, de que fala, e aos bens públicos, também.

João Almeida disse...

Continuando a tratar de valores...
A forma como José Torres foi esquecido nos ultimos anos de sua vida e no momento de evocar a sua memória constitui um exemplo impressivo dos valores que norteiam quem tem responsabilidades públicas hoje em dia, mas também daqueles que seguem e comentam o fenómeno desportivo.
Presto aqui a minha homenagem a alguem cuja estatura moral se equiparava à estatura fisica e prestou os mais altos serviços ao desporto português, sempre com a humildade de quem é grande.

Bom fim de semana a todos

josé manuel constantino disse...

Caro João Paulo,


Este é um notável texto. Como diz o outro: chapeau (de ceremonie)!!!

João Almeida disse...

Obrigado pelas suas palavras professor.
Um abraco das Caraibas.